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terça-feira, 27 de julho de 2010

Caio F. Abreu (Por Ana Lúcia Leal Buzzetto)

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................Caio Fernando Abreu: Um autor múltiplo


Caio Fernando Loureiro de Abreu nasceu na manhã de 12 de setembro de 1948 no interior do Rio Grande do Sul, em Santiago. Talvez em uma manhã de neblina, típica da região e do seu âmago de viajante insólito, inquieto e sem destino, que carrega consigo aquele peso que só os que buscam respostas compreendem. Tinha uma urgência em experimentar todas as coisas da vida, de viver, não com pressa, essa maldita pressa que sufoca e dilacera, mas aquela necessidade de respirar e sentir, ver e se encontrar na imensidão do horizonte. Coisas de alma sensível, ser singular e presente, mesmo quando não desejado. Caio compreendeu desde cedo a angústia de ser diferente, de não entender o mundo comercializável dos homens e a brutalidade de suas relações. Numa sociedade que valoriza o dinheiro ao invés do humano, Caio pagou o preço. Poucos compreendem o inusitado.

A pequena cidade não suportou uma existência tão plena, e a necessidade urgente da experiência o obrigou a estrapolar o espaço físico para descobrir outros mundos possíveis: a capital, o Primeiro Mundo, o submundo, o ilícito. Atravessou fronteiras e corpos para conhecer mais dos homens e das coisas, e descobriu que não importa o destino porque o que vale mesmo é a viagem já que o vazio nunca será preenchido totalmente. Talvez por isso tenha descoberto a escrita tão cedo, essa arma capaz de vencer o vazio e criar mundos, vidas e destinos. Melhores e mais felizes, ou pelo menos em busca, como ele, como nós, que aprendemos desde cedo a reprimir e nos contentar com o cotidiano.

Mas Caio Fernando Abreu sempre foi diferente. Ele com apenas seis anos já escrevia poemas e pequenas histórias, o que chamou a atenção de seus familiares. Um "defeito de fabricação", como ele mesmo dizia, "Uma impossibilidade de viver a vida sem inventar em cima dela", Uma compulsão de "escrever, reescrever, treescrever", que permaneceu durante toda sua múltipla vida literária. Apesar de o conto e as crônicas serem os gêneros predominantes em sua produção, também escreveu romances e várias peças de teatro, além de atuar como roteirista, tradutor e jornalista.

Seu primeiro livro publicado foi "Inventário do irremediável", em 1970 pela Editora Movimento. A obra despertou o interesse da crítica especializada, levando o autor a ser reconhecido na época como uma das jovens promessas da ficção brasileira contemporânea. Mas era o período de coerção máxima da ditadura. Todos sentiam medo, as pessoas eram interrogadas, desapareciam. Em uma época em que todos queriam passar despercebidos, Caio incomodava por ter um estilo de vida alternativo: acendia incensos no trabalho, usava cabelos compridos e era homossexual.

Como todo artista sensível, abalava-se com a censura prévia imposta aos seus textos, mas nunca deixou de escrever o que sentia ou defender o que acreditava, o que lhe rendeu inúmeros desafetos e contribuiu para o sentimento marginal criado em torno da sua figura.. Em 1972 recebeu o Prêmio do Instituto Estadual do Livro pelo conto Visita, e com o dinheiro do prêmio foi para a Europa sonhando com uma vida com mais liberdade, e sem a violência e a perseguição da ditadura.

No entanto a Europa não se revelou o lugar ideal que o autor imaginara, pois lá também encontrou o preconceito contra os sul-americanos e os homossexuais, sendo algumas vezes perseguido e interrogado pela polícia de forma injusta e violenta. Sem conseguir um emprego fixo, passa por situações difíceis pela falta de dinheiro, e volta ao Brasil com a ajuda de seus familiares. Esse período de sofrimento inspirou-o a escrever dois contos primorosos: Lixo e purpurina, publicado em "Ovelhas negras" de 1995, e London London ou ajax, brush and rubish publicado em "Mel & Girassóis", em 1988, e na obra póstuma "Estranhos Estrangeiros" de 1996.

De volta a Porto Alegre, vive um período de difícil adaptação, pois mesmo que as experiências vividas no exterior tenham mudado profundamente a sua maneira de ver o mundo e de entender as pessoas, a ditadura mantinha-se implacável. Se livro seguinte, "O ovo apunhalado", apesar de receber Menção Honrosa do Prêmio Nacional de Ficção em 1973, só conseguiu ser publicado em 1975, e mesmo considerado pela revista Veja como um dos melhores livros do ano teve alguns contos cortados pela censura por atentarem aos "bons costumes".

Mas Caio não se calava. Sua produção seguiu com "Pedras de Caucutá" de 1977, e um dos maiores sucessos editoriais da década: "Morangos mofados" de 1982. Ambos são livros de contos que focalizam a juventude brasileira, vítima da repressão política desencadeada com o Golpe Militar de 1964. É nesse momento que se pode notar uma profunda mudança temática na produção do jovem escritor, que encontra sua maturidade nas intensas reflexões de "Morangos mofados" libertando-se de forma definitiva da forte influência que Clarice Lispector teve no início de sua carreira.

Os anos 80 vão apresentar um escritor maduro, ciente de si mesmo e com o domínio da sua arte. Com "Morangos mofados", Caio diversifica sua matéria ficcional ao incluir um forte caráter social na sua narrativa subjetiva. O êxito da obra também foi importante para a independência financeira do autor, constantemente preocupado com a falta de dinheiro, agravada pela crise econômica que assolava o país e "devorava" suas parcas economias. Caio trabalhava para se sustentar, e a carreira jornalística não foi motivada apenas por interesse profissional, mas pela necessidade de "pagar contas". Esses "bicos" garantiam certa estabilidade para o autor, que ainda não conseguia se manter exclusivamente da literatura.

Com o sucesso de vendas que a obra obteve, o autor pode negociar um vantajoso contrato com a editora Nova Fronteira para a publicação de seu próximo livro "Triângulo das águas", talvez sua obra mais controversa. "Mel & girassóis" é publicada em 1988, ano em que também foi lançado "Os dragões não conhecem o paraíso", obra vencedora do Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro para melhor Livro de Contos. Esta é uma coletânea que reúne treze contos que tem o amor como tema, mas sempre relacionado ao medo, ao abandono, a loucura, a morte, ao sexo e a memória. Seu único livro infantil "As frangas" foi publicado em 1989, e ganhou a Medalha de Altamente recomendável da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil. E em 1990, é lançado seu segundo romance, "Onde andará Dulce Veiga?", livro que recebeu o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de Melhor Romance do Ano.

Aos poucos, a sua obra vai ganhando um reconhecimento internacional. Em 1991 "Os dragões não conhecem o paraíso" é traduzido para o francês e o inglês, e o autor é convidado para realizar várias leituras pela Europa. A excelente repercussão crítica o encoraja a viajar para a Fraça, beneficiando-se de uma bolsa oferecida para escritores estrangeiros de uma renomada instituição daquele país, e nesse período escreve a novela "Bien loin de Marienbad". Com a tradução do seu segundo romance para o alemão e o italiano, Caio é convidado a retornar à Europa em 1993 e viaja pela Alemanha, Amsterdam, Holanda, França e Itália, além de participar de um importante congresso sobre literatura e homossexualidade e de um encontro internacional de escritores. No ano seguinte saem as traduções para o francês e o holandês do mesmo romance. Caio retorna a Europa e é consagrado no Salão do Livro de Paris com o lançamento da tradução francesa de "Onde andará Dulce Veiga?", a novela "Bien loin de Marienbad" e o livro de contos "L'autre Voix". O sucesso é tamanho que ainda é indicado como um dos seis finalistas para o Prêmio Laura Battaglion para Melhor Romance Traduzido por "Qu'est devenue Dulce Veiga?".

De volta ao Brasil, descobre em agosto de 1994 que é portador do vírus da AIDS, e decide divulgar publicamente sua doença em três crônicas históricas na sua coluna semanal no jornal O Estado de São Paulo. Na última delas, intitulada 'Última carta para além dos muros', fala abertamente sobre o difícil período que passou depois de receber o resultado do exame, e sobrtudo sua imensa vontade de lutar pela vida e de continuar escrevendo. Segundo o estudo de Marcelo Secron Bessa, Caio Fernado Abreu foi o primeiro escritor brasileiro a tratar literalmente a temática da AIDS, sendo que a novela 'Pela noite', do livro "Triângulo das águas", é vista como o marco inaugural do assunto no Brasil.

E a AIDS aparecerá então em todos os seus livros seguintes. O medo do contágio, o preconceito e a angústia da dúvida de estar contaminado estão presentes em contos como 'Linda, uma história horrível' e 'Dama da noite'; como desfecho de um mistério, como no caso do romance "Onde andará Dulce Veiga?"; ou, ainda, com toques de humor negro nas peças 'Zona contaminada' e ' O homem e a mancha'. Nos últimos textos, demonstrava alternar momentos de raiva e deboche em relação ao vírus, mas nunca de autopiedade. Sua atitude tentava ser quase sempre positiva, e, ironicamente, zombava que finalmente sentia-se um "autor positivo".

Gozando de intenso prestígio internacional, Caio retorna para a Alemanha para participar da 46ª Feira do Livro de Frankfurt e faz releituras de seus livros em diversas cidades alemães, sendo aclamado como um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Em 1995 foi escolhido pela Câmara Rio-Grandense do Livro Patrono (ou "padroeiro" como brincava) da 41ª Feira do Livro de Porto Alegre, e seu nome foi incluído na antologia The Penguin Book Gay Writing, com o conto Linda, uma história horrível.

O último ano de vida do autor foi devotado a família e aos pequenos prazeres da vida, como meditar, cuidar do jardim da casa em que morava em Porto Alegre com seus pais e, acima de tudo, escrever. Apesar de ter que conviver com os efeitos da AIDS, nunca quis supervalorizar a doença, e irritava-se com o fato de ter se tornado uma "celebridade" após a divulgação de que era soropositivo. Preferia valorizar a vida, pois sabia que cada instante era precioso demais para ser desperdiçado.

Refletindo sobre sua trajetória, analiza sua obra e faz várias revisões de seus textos. Decide publicar o livro "Ovelhas negras", uma coletânea de textos escritos em diferentes momentos e que constituem, segundo o próprio autor, uma espécie de "biografia ficcional" que retrata toda uma vida dedicada à escrita. A obra recebeu o Prêmio Jabuti no ano seguinte. Ainda em 1995, revisa e publica seu primeiro livro de contos, alterando inclusive o título para "Invantário do ir-remediável" com a adição de um "esperançoso hífen", deixando transparecer sua imensa vontade de transgredir também a morte.

Mas isso, nem ele mesmo conseguiu. Caio Fernando Abreu moreu em 25 de fevereiro de 1996, por complicações decorrentes da AIDS e de uma grave pneumonia. Após a morte do escritor, foram reunidas suas crônicas publicadas no Estadão e em Zero Hora em "Pequenas epifanias", e alguns contos inéditos em "Estranhos estrangeiros", ambos de 1996. Em 1997, suas peças foram reunidas no livro "Teatro completo", e "Pequenas epifânias" recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura concedido pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Em 2000, os contos Aqueles dois e Linda, uma história horrível foram incluidos em "Os cem melhores contos brasileiros do século" organizado por Ítalo Moriconi, que em 2002 também organizou as cartas do escritor para diversos amigos e familiares no livro "Cartas - Caio Fernando Abreu".

Na época do seu falecimento, vários jornais e revistas de circulação nacional prestaram-lhe homenagens, dedicando várias páginas à memória do autor que enfatizavam principalmente a sua vida literária e pessoal, revelando o homem sempre coerente com seus atos e suas opiniões, o amigo íntimo, com um olhar sereno e extremamente lúcido sobre a vida e a condição humana. Mas se por um lado a crítica jornalística esteve sempre presente, o mesmo não se pode dizer a respeito da crítica acadêmica.

Na verdade, Caio foi um autor marginalizado pela academia desde as suas primeira publicações, justamente pelas características que o levariam definitivamente a um lugar de destaque dentro da literatura sul-rio-grandense e brasileira. Em uma época em que predominava o realismo quase documental, Caio surge com uma nova proposta temática e estética, aliando forma e conteúdo de forma inédita. Luís Augusto Fischer considera que o tratamento que o autor deu à matéria ficcional foi inovador, pois utilizava técnicas cinematográficas, com o uso de vários planos temporais interligados e várias vozes narrativas, o que possibilitava uma criação muito maior com a criação de atmosferas e climas internos do que com uma simples representação da realidade de forma factual.

Todos esses fatores certamentem contribuem para uma interpretação plural dos textos de Caio Fernando Abreu, e aliados à extensão e à diversidade de sua obra, dificultam uma leitura totalizante de seus escritos. Não é por acso, portanto, que a crítica brasileira ficou muitas vezes entorpecida diante do complexo autor e de uma obra de tamanho fôlego, mas não tardou a perceber a profunda relação que ela tinha com o contexto de sua produção, evidência de que o autor dialogava com a sociedade em que vivia ao discutir temas difíceis, considerados tabus em uma época que suprimiu a democracia. Com uma aguçada consciência do momento histórico vivido e daquilo que era preciso fazer para modificá-lo, Caio deixa transparecer nos seus escritos não só uma profunda necessidade de escrever sobre suas próprias experiências, mas sobre a urgente necessidade de mudanças sociais e políticas.

Assim , aliada à responsabilidade social de ser escritor, sentida de forma aguda pelo autor, existe também uma necessidade pessoal de escrever para tentar encontrar-se a si mesmo, e poder finalmente reconhecer-se no meio dos demais. Na obra de Caio Fernando Abreu, a busca de uma identidade coletiva liga-se intrinsecamente ao problema íntimo da descoberta da própria identidade, conjugando plano estético, social e existencial. Caio Fernando - ou Caio F. como gostava de assinar - se destacou de seus contemporâneos por abordar temas polêmicos como as drogas, o homoeroterismo e a AIDS de maneira honesta, sem estigmas, e discutir os relacionamentos de maneira realista, valorizando cada ilusão e incerteza.

O autor deixa claro em seus textos que a literatura não é, para ele, apenas uma realização individual, pois, ao falar de si, fala também de sentimentos, angústias e vivências comuns a toda uma coletividade, e entende que sua tarefa como escritor, como ele mesmo define, "é documentar as coisas, isto é, a vivência do meu tempo e de minha geração". Assim, o fazer literário e a situação histórica interagem, mas não criam um mundo datado, visto que o sonho de mudar o mundo, a angústia e a incerteza diante do futuro são questões universais presentes não só na sua obra, mas nas diferentes formas de expressões artística. A literatura seria mais uma maneira de revelar como essas preocupações fundamentais do humano tomam forma nos mais diferentes períodos históricos, pois ela é fruto da imaginação, da vivência e das experiências de seres que também estão inseridos em um determinado contexto histórico.

Nesse sentido, Caio também pode dar o seu testemunho diante desta realidade problemática já que o autor experimentou quase todos os tipos de comportamentos, modismos e idéias utópicas que o texto analisa e destrói criticamente. Discutindo e tematizando os conteúdos sociais e culturais na sua obra, a escrita de Caio Fernando Abreu é, em si mesma, autobiográfica, oriunda da necessidade de falar sobre a experiência vivida, o trauma da repressão e o asfixiamento da liberdade sentidos por toda uma geração. É, ao mesmo tempo, um trabalho consciente de criação artística e de análise crítica, que se abre para o mundo não para lamentá-lo, mas para tentar entendê-lo. E este é, sem dúvida, o maior objetivo da sua poética.



(Profª. Msc. Ana Lúcia Leal Buzzetto)*





*Natural de Santa Maria - RS
Professora e colaboradora do projeto "Santiago do Boqueirão, seus poetas quem são?"

Mestre em Letras (UFSM RS)

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Texto retirado do livro dedicado ao Caio Fernando Abreu, dentro do projeto "Santiago do Boqueirão, seus poetas quem são?"

Como já citei em outra postagem, recebi esse livro de duas pessoas especiais do "Passo da Guanxuma", a Santiago do Boqueirão ficcionada pelo Caio. (Terra do Caio F.)


Postado sem a devida autorização, qualquer reclamação, me contate aqui mesmo que deletarei.

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Outras duas crônicas onde divulga publicamente sua doença:

Primeira carta para além do muro

Segunda carta para além dos muros


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